quinta-feira, 12 de março de 2020

PARA LER 3...



EMBUSCA DO HERÓI PERDIDO
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A literatura brasileira nunca foi tão carente de herói como é a contemporânea. Depois do Modernismo, a figura heroica que procurava enfrentar o mal e organizar o caos existente na humanidade, passou a ser um herói que nega sua vulnerabilidade mergulhando numa enorme solidão.
Desde a antiguidade clássica grega à era moderna, o herói era personificado como um ser invencível e imortal. Possuía e cumpria o papel que lhes era destinado: o de protetores e defensores dos fracos e oprimidos da humanidade. Para ele o mais importante era combater o mal, e neste contexto, vencia sempre o bem. Era assim que a justiça e a bondade prevaleciam e empenhavam-se em combater as forças do mal. O herói enfrentava o perigo com fé e disposição de vencer, ao contrário do pós-moderno, que se tornou amargurado por ter sempre que vencer ou provar a sua invencibilidade. Percebemos que na literatura contemporânea há um destaque maior para o anti-herói. Essa visão imaginária se dá pelo fato de que autores contemporâneos cultuam temas ligados a própria realidade. A existencial. Mário de Andrade, escritor da primeira fase modernista no Brasil, deu destaque ao seu anti-herói, ou ao seu herói sem nenhum caráter, Macunaíma. A caricaturização deste herói é a vanguarda de todos os anti-heróis nacionais. A partir daí a literatura passa a dar ênfase, não mais somente aos feitos heroicos, e sim aos relacionados com os personagens coadjuvantes e não aos protagonistas da história.
Heróis homéricos como Aquiles, Hércules e Perseu, eram o ser/herói único e solidamente construído, em que o imaginário mitológico permitia a fusão entre os deuses e o ser mortal, permanecendo num ciclo eterno, diferentemente da contemporaneidade, em que esta unicidade cedeu lugar a deuses desconstruídos. Na história da literatura a presença do homem comum como protagonista é, sobretudo, recente, pois sempre comportou apenas heróis considerados grandiosos capazes de realizar seus feitos em prol de uma humanidade tão carente de salvação. Esses heróis/deuses eram dotados de grande força e apareciam sempre com coragem e força, capazes de levar avante ações heroicas. Na modernidade este tipo de herói entra em decadência. Marshal Berman em seu livro Tudo que é sólido desmancha no ar, afirma que o ponto crucial do heroísmo moderno emerge de situações de conflito que permeiam a vida cotidiana no mundo moderno.
Ao compararmos o herói clássico com o moderno, percebemos um distanciamento em sua composição e conceito de ser herói. Walter Benjamim observa esta questão em seu texto A Modernidade, o qual aborda a obra de Charles Baudelaire. Para ele, o herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Sendo assim, é preciso então que tenhamos uma constituição heroica para se viver na modernidade. O heroísmo de Baudelaire está na forma como resiste ao mundo mesmo em situações adversas. Surge daí uma nova realidade inerente ao herói urbano, o flâneur, que vagueia pela cidade em busca de oportunidades, um sonho. E este herói baudelairiano está condenado a sofrer nesse mundo, pois não existe para ele uma função determinada, o que o aproxima do herói grego por terem uma existência trágica marcadas pelo sofrimento. Para Benjamim este herói moderno não estaria deslocado no tempo nem no espaço, pois observa a sua decadência dando lugar a um herói urbano, ao homem comum que anda pelas ruas, observa as pessoas, as casas, e isola-se devido a sua insegurança em relação ao mundo, tornando-se um herói melancólico.
Berman ainda afirma que um dos problemas fundamentais do modernismo do século XX é que nossa arte tende a perder contato com a vida cotidiana das pessoas. Com esse distanciamento a tendência é a separação do homem comum ao herói. Na literatura, o herói épico é imortalizado nas obras de Homero, depois ganham destaque nas novelas de cavalaria. Obras como Don Quixote, de Miguel de Cervantes e A Demanda do Santo Graal, do organizador Heitor Megale, retratam fielmente a posição do homem/ herói. Todos são movidos pela honra e o desejo de tornarem-se heróis de suas próprias aventuras. A nenhum deles é atribuído super-poderes, diferentemente de outros heróis que saíram dos gibis para as telas de cinema em Hollywood. Percebeu-se a partir daí a necessidade de se criar um herói. O objetivo era justamente preencher ilusoriamente a falta deste herói. Personagens como o Super Homem, Batman, Hulk e Homem Aranha, surgiram numa época em que o homem já não tinha heróis nenhum. Perdeu-se o encanto, a magia da mitologia, para entrar em cena o herói que todo o homem pós-moderno desejava ser. O herói que resolve tudo por si só. Invencível e acima de tudo, imortal, que se utiliza de recursos tecnológicos, armas e às vezes, suas próprias mãos para combater o mal.
Do Barroco ao Modernismo esse herói literário desaparece por completo. Resta-nos apenas a presença marcante dos anti-heróis que compõem os romances e ganham destaque nas obras sobrepondo-se ao protagonista. De Shakespeare a João Guimarães Rosa, eles brilham ofuscando muitas vezes, o brilho que seria do personagem principal. E o resultado é exatamente o surgimento de grandes personagens como Iago, de Othelo, que manipula todos os demais personagens e enriquece a obra, transformando-a numa belíssima tragédia.
Essa ausência do herói na literatura é notada pela falta que o mesmo faz em uma obra. Mesmo se criando personagens esteticamente considerados anti-heróis, que agradam a seus leitores, e tem o seu espaço garantido, falta na literatura o personagem que nos permita voltar a sonhar com o heroísmo e a magia que a literatura medieval exercia sobre o leitor. O que é um grande paradoxo, quando esperamos que surgisse um herói num mundo tão desconstruído de sonhos, em que a realidade é fria e agressiva, cheia de individualismos e culto a violência. Neste contexto então, é cabível que nos conformemos apenas com os heróis que ainda sobrevivem nos gibis, até que eles se percam no ostracismo que o tempo exerce sobre a figura de todos aqueles personagens quem um dia também foram heróis.

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