A
VELHICE INDESEJADA EM O MULO DE DARCY
RIBEIRO
teacherginaldo@hotmail.com
Escrito em 1981, O Mulo de Darcy Ribeiro aborda com
sensibilidade objetiva, o desespero de um homem que é acometido pela velhice e
a presença da morte. Essa insatisfação é relatada em forma de uma carta
autobiográfica, em que o protagonista em um momento de lucidez, ou mesmo a
falta desta, resolve escrever uma longa carta-testamento para um leitor
invisível, um futuro padre, que será o único herdeiro de todos os seus bens.
O tema em si, a velhice, na
literatura não é novidade alguma. Porém, a maneira pela qual Darcy Ribeiro
transforma o seu herói ou anti-herói, com maestria é que o torna um tema mais
que contemporâneo. Falar sobre a velhice é, sobretudo, um fato que é irremediável. Uma conformação,
mas nunca uma aceitação por completo. É ela, junto com a morte, as duas maiores
decepções humanas e as que são mais rejeitadas pela humanidade. Essa não
aceitação da velhice sempre esteve atrelada ao desejo da imortalidade. O culto
do belo na literatura vem criando, ao longo dos tempos, personagens que se
tornaram imortais pela sua posição em relação à velhice. É o que notamos em
Dorian Gray[1] em
que a fascinação pela própria imagem, o transforma em demoníaco. A beleza o
seduz. O corrompe. E o preço dessa satisfação narcisista é a entrega de sua
alma ao Diabo. Assim também o é Fausto[2],
que inconformado com a sua velhice, deixa-se levar também pelo Diabo, depois de
fazer um pacto, para poder viver o que não vivera em toda a sua vida.
Philogônio Castro Maya não tem a
mesma oportunidade que Fausto e Dorian tiveram. O Diabo não aparece para ele.
Não há nenhum pacto a fazer. Não há também salvação. Se há perdição da alma ela
se deu no percurso de sua trajetória de homem, coronel do sertão, cruel,
embrutecido pelo meio, animalizado e depois civilizado. O tempo é o seu
verdadeiro inimigo. E o que lhe resta é escrever a um leitor que não conhece,
sobre suas andanças, amores, desilusões, crimes e sonhos perdidos. O padre
imaginário somos todos nós o leitor. Philogônio possui características de
Riobaldo[3]
no que se refere à narrativa, construída pelos atos de um só personagem,
através de sua fala, feito de sonhos e reminiscências que lembram o personagem
de Grande Sertão: Veredas. O que o
difere, no entanto, é a linguagem. Darcy utiliza uma linguagem menos erudita
que Guimarães, mas também de grande importância em termos regionalistas,
neologismos, e caracterização para compor o personagem.
O monólogo de Philogônio se dá em
sua casa, em Laranjos, no meio da sala, sentado a sua mesa. Ninguém por
testemunha. De seu desespero ao esperar a morte, só tem ciência o leitor. O
ouvinte. E esse leitor atento toma conhecimento do personagem na medida em que
ele vai narrando, a seu modo, como subiu na vida, matou, mandou, explorou e
agora definha. A revolta particular de Philogônio está relacionada à sua
solidão. Depois de conquistar terras, pessoas, mandar e desmandar acha-se
sozinho questionando de forma ríspida, metafísica a posição de Deus e a sua
própria posição. Ambos mandam nesse mundo. Sua confissão manipula o leitor.
Cativa-o. Firma-se um pacto. Uma retórica do mando, de um homem que espera ser
perdoado por Deus, em episódios tórridos e violentos, registrados nos nove
capítulos que lembram o Inferno de Dante[4]
que é a sua própria perdição.
O tempo da narrativa é alternado
entre o presente e o passado, o que possibilita ao leitor a não se entediar com
a narrativa de seus capítulos longos e numerosos, produzido por um narrador que
oscila entre a embriaguez e a lucidez, num discurso ambíguo interligado com a
não-linearidade. Philogônio relata apenas o que pretende relatar. Pede perdão
por seus pecados e acredita que através de rezas possa ser salvo, quando chegar
o momento do encontro com Deus na eternidade. Espera ser redimido pelo padre.
Também explora o leitor e o força a ser íntimo diante de sua catástrofe
particular. Sua intimidade, seus relacionamentos sexuais com mulheres diferentes,
com animais, e até mesmo homossexuais, ocorrem como conseqüências de determinados
períodos que marcaram a vida do personagem. Aqui neste contexto nada é pudico.
Nada recende ao moralismo. Tudo aconteceu porque estava prescrito no destino
deste homem que precisou abraçar o mundo para depois conquistá-lo.
Descobre logo cedo que nesse mundo
só há espaço para dois tipos de gente. O que nasce para mandar e o que nasce
para obedecer. Neste aspecto o mando passa a fazer parte de sua vida. Agarra-se
ao poder e através dele, conquista o mundo que o espera sem medir esforços,
utilizando-se muitas vezes da violência para alcançar o seu ideal. Suas
mulheres são vítimas de seu desejo. O instinto animalesco o domina. Não há
romantismo para esse homem-mulo, de tantos eus
complexos, que defende com afinco sua posição de homem temível. Sua fragilidade
só é explicitada quando é relatada para o leitor a sua doença. O enfisema. Revolta-se com a sua fragilidade e
atribui a culpa de sua anomalia à velhice. A definhação do corpo. A perda do
sentido da vida. A velhice enrugada, a flacidez de pele, do órgão genital, como
o pior dos castigos que o homem pode sofrer. Diante desta não aceitação de sua
condição, Philogônio se segura a sua narrativa como um pretexto para prolongar
mais um pouco a sua morte. É o meio pelo qual a vítima-autor escolhe para antecipar
e viver mais cada dia que lhe resta. Acredita na impossibilidade de realização
de seu projeto e espera terminá-lo, a sua maneira, como um último desejo
atribuído. E para isso tem pressa. Alerta ao leitor a sua necessidade de
escrever com mais rapidez para poder não deixar nenhum detalhe vivido e
lembrado sem registro.
Como leitor testemunhamos as
transformações que esse homem-mulo sofre no decorrer de sua narrativa, através
de sua linguagem ríspida com amargura, que o transtorna com violência. Talvez
seja este o ponto em que captamos diferentes universos sugeridos pelo próprio
protagonista, como símbolo evidente de sua difícil trajetória. Philogônio
Castro Maya é o seu último nome, porém, o protagonista teve outros nomes que o
acompanhou em diferentes etapas de sua vida: no início foi chamado de Trem,
Filó, Terêncio Bórgea, Terezo, quando ainda não era um existencial, não tinha
documentos. Depois, quando adquiriu documentos – título de eleitor – torna-se
simbolicamente civilizado e adota o nome de Philogônio Castro Maya.
Philogônio ainda se depara com mais
uma tragédia antes de finalizar o seu diário-testamento. A morte de seu fiel
escudeiro Militão, responsável e encarregado de encontrar o padre que será o
leitor e herdeiro de seus bens. Esta última fatalidade é o desfecho não
esperado pelo protagonista-escritor. De nossa parte cumprimos fielmente o papel
de ouvinte e padre confessor. Rompe-se também a narrativa. Nada mais há para
ser dito. O trabalho exaustivo chega ao fim sem ter sido finalizado. “Quem pegará meus papéis de confissão e
sairá, depois de minha morte, em busca do senhor, seu padre? [...] Não conto
com ninguém...”
Darcy
Ribeiro, nas palavras do mulo, nos questiona de forma universal quem somos nós.
E responde: “Todos nós somos o mulo”. O
Mulo é uma obra de questionamentos, articulada pelo narrador, que é ao
mesmo tempo o contador e intérprete de sua própria história. É um verdadeiro
resgate na literatura brasileira do o herói ou anti-herói que há tempos vem
sendo esquecido.
[1] O retrato de Dorian Gray. Oscar Wilde.
[2] Fausto. Goethe.
[3]
Grande Sertão:Veredas. João Guimarães
Rosa.
[4]
A Divina Comédia. Dante Aliguieri.
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