quarta-feira, 17 de julho de 2019

RESENHANDO...


A VELHICE INDESEJADA EM O MULO DE DARCY RIBEIRO
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            Escrito em 1981, O Mulo de Darcy Ribeiro aborda com sensibilidade objetiva, o desespero de um homem que é acometido pela velhice e a presença da morte. Essa insatisfação é relatada em forma de uma carta autobiográfica, em que o protagonista em um momento de lucidez, ou mesmo a falta desta, resolve escrever uma longa carta-testamento para um leitor invisível, um futuro padre, que será o único herdeiro de todos os seus bens.
            O tema em si, a velhice, na literatura não é novidade alguma. Porém, a maneira pela qual Darcy Ribeiro transforma o seu herói ou anti-herói, com maestria é que o torna um tema mais que contemporâneo. Falar sobre a velhice é, sobretudo,  um fato que é irremediável. Uma conformação, mas nunca uma aceitação por completo. É ela, junto com a morte, as duas maiores decepções humanas e as que são mais rejeitadas pela humanidade. Essa não aceitação da velhice sempre esteve atrelada ao desejo da imortalidade. O culto do belo na literatura vem criando, ao longo dos tempos, personagens que se tornaram imortais pela sua posição em relação à velhice. É o que notamos em Dorian Gray[1] em que a fascinação pela própria imagem, o transforma em demoníaco. A beleza o seduz. O corrompe. E o preço dessa satisfação narcisista é a entrega de sua alma ao Diabo. Assim também o é Fausto[2], que inconformado com a sua velhice, deixa-se levar também pelo Diabo, depois de fazer um pacto, para poder viver o que não vivera em toda a sua vida.
            Philogônio Castro Maya não tem a mesma oportunidade que Fausto e Dorian tiveram. O Diabo não aparece para ele. Não há nenhum pacto a fazer. Não há também salvação. Se há perdição da alma ela se deu no percurso de sua trajetória de homem, coronel do sertão, cruel, embrutecido pelo meio, animalizado e depois civilizado. O tempo é o seu verdadeiro inimigo. E o que lhe resta é escrever a um leitor que não conhece, sobre suas andanças, amores, desilusões, crimes e sonhos perdidos. O padre imaginário somos todos nós o leitor. Philogônio possui características de Riobaldo[3] no que se refere à narrativa, construída pelos atos de um só personagem, através de sua fala, feito de sonhos e reminiscências que lembram o personagem de Grande Sertão: Veredas. O que o difere, no entanto, é a linguagem. Darcy utiliza uma linguagem menos erudita que Guimarães, mas também de grande importância em termos regionalistas, neologismos, e caracterização para compor o personagem.
            O monólogo de Philogônio se dá em sua casa, em Laranjos, no meio da sala, sentado a sua mesa. Ninguém por testemunha. De seu desespero ao esperar a morte, só tem ciência o leitor. O ouvinte. E esse leitor atento toma conhecimento do personagem na medida em que ele vai narrando, a seu modo, como subiu na vida, matou, mandou, explorou e agora definha. A revolta particular de Philogônio está relacionada à sua solidão. Depois de conquistar terras, pessoas, mandar e desmandar acha-se sozinho questionando de forma ríspida, metafísica a posição de Deus e a sua própria posição. Ambos mandam nesse mundo. Sua confissão manipula o leitor. Cativa-o. Firma-se um pacto. Uma retórica do mando, de um homem que espera ser perdoado por Deus, em episódios tórridos e violentos, registrados nos nove capítulos que lembram o Inferno de Dante[4] que é a sua própria perdição.
            O tempo da narrativa é alternado entre o presente e o passado, o que possibilita ao leitor a não se entediar com a narrativa de seus capítulos longos e numerosos, produzido por um narrador que oscila entre a embriaguez e a lucidez, num discurso ambíguo interligado com a não-linearidade. Philogônio relata apenas o que pretende relatar. Pede perdão por seus pecados e acredita que através de rezas possa ser salvo, quando chegar o momento do encontro com Deus na eternidade. Espera ser redimido pelo padre. Também explora o leitor e o força a ser íntimo diante de sua catástrofe particular. Sua intimidade, seus relacionamentos sexuais com mulheres diferentes, com animais, e até mesmo homossexuais, ocorrem como conseqüências de determinados períodos que marcaram a vida do personagem. Aqui neste contexto nada é pudico. Nada recende ao moralismo. Tudo aconteceu porque estava prescrito no destino deste homem que precisou abraçar o mundo para depois conquistá-lo.
            Descobre logo cedo que nesse mundo só há espaço para dois tipos de gente. O que nasce para mandar e o que nasce para obedecer. Neste aspecto o mando passa a fazer parte de sua vida. Agarra-se ao poder e através dele, conquista o mundo que o espera sem medir esforços, utilizando-se muitas vezes da violência para alcançar o seu ideal. Suas mulheres são vítimas de seu desejo. O instinto animalesco o domina. Não há romantismo para esse homem-mulo, de tantos eus complexos, que defende com afinco sua posição de homem temível. Sua fragilidade só é explicitada quando é relatada para o leitor a sua doença.  O enfisema. Revolta-se com a sua fragilidade e atribui a culpa de sua anomalia à velhice. A definhação do corpo. A perda do sentido da vida. A velhice enrugada, a flacidez de pele, do órgão genital, como o pior dos castigos que o homem pode sofrer. Diante desta não aceitação de sua condição, Philogônio se segura a sua narrativa como um pretexto para prolongar mais um pouco a sua morte. É o meio pelo qual a vítima-autor escolhe para antecipar e viver mais cada dia que lhe resta. Acredita na impossibilidade de realização de seu projeto e espera terminá-lo, a sua maneira, como um último desejo atribuído. E para isso tem pressa. Alerta ao leitor a sua necessidade de escrever com mais rapidez para poder não deixar nenhum detalhe vivido e lembrado sem registro.
            Como leitor testemunhamos as transformações que esse homem-mulo sofre no decorrer de sua narrativa, através de sua linguagem ríspida com amargura, que o transtorna com violência. Talvez seja este o ponto em que captamos diferentes universos sugeridos pelo próprio protagonista, como símbolo evidente de sua difícil trajetória. Philogônio Castro Maya é o seu último nome, porém, o protagonista teve outros nomes que o acompanhou em diferentes etapas de sua vida: no início foi chamado de Trem, Filó, Terêncio Bórgea, Terezo, quando ainda não era um existencial, não tinha documentos. Depois, quando adquiriu documentos – título de eleitor – torna-se simbolicamente civilizado e adota o nome de Philogônio Castro Maya.
            Philogônio ainda se depara com mais uma tragédia antes de finalizar o seu diário-testamento. A morte de seu fiel escudeiro Militão, responsável e encarregado de encontrar o padre que será o leitor e herdeiro de seus bens. Esta última fatalidade é o desfecho não esperado pelo protagonista-escritor. De nossa parte cumprimos fielmente o papel de ouvinte e padre confessor. Rompe-se também a narrativa. Nada mais há para ser dito. O trabalho exaustivo chega ao fim sem ter sido finalizado. “Quem pegará meus papéis de confissão e sairá, depois de minha morte, em busca do senhor, seu padre? [...] Não conto com ninguém...”   
Darcy Ribeiro, nas palavras do mulo, nos questiona de forma universal quem somos nós. E responde: “Todos nós somos o mulo”. O Mulo é uma obra de questionamentos, articulada pelo narrador, que é ao mesmo tempo o contador e intérprete de sua própria história. É um verdadeiro resgate na literatura brasileira do o herói ou anti-herói que há tempos vem sendo esquecido.

           
             




[1] O retrato de Dorian Gray. Oscar Wilde.
[2] Fausto. Goethe.
[3] Grande Sertão:Veredas. João Guimarães Rosa.
[4] A Divina Comédia. Dante Aliguieri. 

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